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Seedcast em Português: 20 anos de Acampamento Terra Livre

Nia Tero Season 4 Episode 7

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O Acampamento Terra Livre (ATL) é a maior mobilização indígena do Brasil. Em 2024, ano de seu 20º aniversário, 9 mil indígenas do Brasil e do mundo reuniram-se em Brasília para defender seus direitos e suas terras. Atualmente, a representação indígena no governo brasileiro é a maior de todos os tempos. Muito mudou ao longo desses 20 anos de ATL, mas pairavam sobre a reunião as preocupações de todos com a tese do marco temporal, que poderia limitar os direitos de muitos povos indígenas a suas terras. Neste episódio, ouviremos muitos dos sons, cantos, músicas e vozes do Acampamento Terra Livre 2024. A luta pelos direitos indígenas no Brasil é uma luta de todos: uma luta pelo planeta Terra, pelo clima e por justiça social. Independentemente de onde você estiver, essa luta também é por você.  

  

Apresentação, produção, tradução e mixagem de áudio: Marianna Romano.  

Produção adicional: Idjahure Kadiwel.  

Edição de histórias: Jenny Asarnow e Maria Fernanda Ribeiro.  

Agradecimentos especiais a Nara Baré e Daniela Lerda.  

  

Saiba mais sobre o Acampamento Terra Livre e o trabalho da Apib:  

Seedcast is a production of Nia Tero, a global nonprofit which supports Indigenous land guardianship around the world through policy, partnership, and storytelling initiatives.

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20 Anos do Acampamento Terra Livre 

Seedcast, Temporada 4, Episódio 6 

Data da publicação: 17 de julho de 2024 

 

[00:00] [Cantos no Acampamento Terra Livre, 2024]   

 

[00:17] Daiara Tukano: Estamos aqui comemorando 20 anos de Acampamento Terra Livre — essa que se tornou a maior mobilização indígena não só do Brasil, mas do mundo, reunindo centenas, milhares de lideranças vindas de todo o país para dialogar com os três poderes na frente do Estado brasileiro para a defesa dos nossos direitos originários.  

 

[00:45] Kretã Kaingang: Se a gente fosse pensar numa Universidade da Luta, o Acampamento Terra Livre seria isso.  

 

[01:00] Valeria Paye:  Ele realmente se tornou um espaço de assembleia dos povos indígenas do Brasil, que é um espaço da visibilidade para a luta indígena e visibilidade para a sociedade desse ser indígena que nós somos.  

 

[01:23] Daiara Tukano: Eu acho que esse momento de 20 anos do Acampamento Terra Livre traz esse diferencial de fazer um exercício da memória, homenageando suas lideranças históricas. Algumas lideranças aqui de mais de 100 anos: grandes rezadores, líderes centenários que atravessaram todo esse período do Brasil e que vêm hoje aqui com seus filhos, seus netos, seus bisnetos. Nesse ano, o ATL virou vovô, né? Tem 20 anos. Aqui estão os filhos do ATL que já estão fazendo os netos do ATL.  

 

[01:58] Marianna Romano: Bem-vindos ao Seedcast. Eu sou Marianna Romano e, recentemente, eu compareci à 20ª edição do Acampamento Terra Livre aqui no Brasil, também conhecido pela sua sigla, ATL.  

 

[Música tema do Seedcast começa] 

 

[03:22] Marianna: O Acampamento Terra Livre é onde os povos indígenas vão para exigir seus direitos às suas terras e seu bem-viver, compartilhar cultura, celebrar suas formas de ser e fazer um balanço da situação atual e histórica da vida indígena.  

 

Eu estava lá com meu parceiro de produção Idjahure Kadiwel, e, juntos, nós entrevistamos muitas pessoas para fazer um episódio aqui no Seedcast, com o objetivo de trazer para vocês um pouco do sentimento de como é estar lá, para aqueles que não puderam ir.  

 

Na introdução você ouviu as vozes de Kretã Kaingang, Daiara Tukano e Valéria Paye. 

 

[Música tema do Seedcast] 

 

[03:08] Marianna: O Acampamento Terra Livre aconteceu em Brasília no final de abril de 2024 e reuniu cerca de 9 mil indígenas — um número recorde para esse evento. 

 

No final dele, participantes e organizações entregaram coletivamente uma carta ao governo brasileiro chamada Declaração Urgente dos Povos Indígenas do Brasil. Aqui, a gente apresenta o começo dessa carta, lida por Idjahure Kadiwel.  

 

[Cantos e percussão do Acampamento Terra Livre tocando ao fundo]  

 

[03:40] Idjahure Kadiwel, lendo a Declaração Urgente dos Povos Indígenas do Brasil: 

 

Nós, povos indígenas, somos o próprio tempo. Somos encantadores desse tempo que é como uma serpente, com muitas curvas, uma história que não pode ser simplificada como uma linha reta. Quem poderia imaginar que, após mais de cinco séculos de colonização e extermínio, estaríamos aqui, firmes como nossas florestas, entoando nossos cantos e tocando nossos maracás, em resistência pela vida e pelo bem viver de toda a sociedade? Vinte anos de Acampamento Terra Livre! Vinte anos de Acampamento Terra Livre! O primeiro, realizado em 2004, reuniu 240 indígenas. Hoje, em Brasília, estamos aqui com cerca de 9 mil pessoas, representando mais de 200 povos, que vieram de todas as regiões e biomas desse território brasileiro para dizer: ‘NOSSO MARCO É ANCESTRAL! SEMPRE ESTIVEMOS AQUI!’" 

 

[05:00] Marianna: Ao longo dos anos, o evento se tornou o principal fórum do movimento indígena brasileiro. Segue mais um trecho da carta.  

 

[05:09] Idjahure Kadiwel, lendo a Declaração Urgente dos Povos Indígenas do Brasil: 

 

"Assim como fizeram nossos ancestrais, resistiremos até o fim, mesmo que isso signifique colocar em jogo nossas próprias vidas, para proteger o que é mais sagrado para nós: nossa Mãe Terra. Estamos comprometidos com o direito de viver com dignidade e liberdade, buscando o bem-viver das gerações atuais e futuras dos nossos povos e da humanidade. 
 

O que nos preocupa não é a morte. Esta, nós conhecemos de perto. Morte e vida são parte dessa serpente do tempo que transita sobre a terra, dentro das águas e na copa das árvores mais altas. O que nos preocupa é a covardia de quem tenta dominar o tempo indomável e busca lucrar com as nossas mortes. Nesta declaração afirmamos: NÃO HÁ MAIS TEMPO PARA VOCÊS!  

Rejeitamos veementemente qualquer tentativa do governo federal de retomar políticas públicas sem garantir o essencial: a demarcação, proteção e sustentabilidade dos territórios indígenas em primeiro lugar. Qualquer iniciativa que não priorize esses aspectos será apenas uma medida paliativa e insuficiente. É fundamental que a demarcação de terras seja respeitada e protegida, sem desvios ou manipulações. Os direitos territoriais dos povos indígenas são INEGOCIÁVEIS e devem ser preservados a todo custo." 

 

[07:05] Marianna: O acampamento aconteceu no centro de Brasília, em um parque cultural a céu aberto, que, ao longo dos dias, se converteu em uma aldeia pluriétnica com o objetivo de discutir o futuro político dos povos indígenas.  

Brasília é a capital do Brasil. O clima é seco, a cidade cheia de carros, e o calor em abril é muito forte. Mesmo assim, o acampamento reúne milhares de participantes.  

 

Centenas de barracas de acampamento dividem o espaço com estruturas robustas, como as tendas das organizações indígenas, entre elas o atendimento à saúde, coletiva de imprensa, cinema e também o “corredor da trajetória”, que trazia um histórico dos 20 anos de luta. 

 

Servindo de centro comunitário dessa aldeia temporária, estava a tenda principal: uma estrutura imensa, equipada com palco, telão, sistema de som e duas arquibancadas laterais — tudo isso preservando o piso de grama original do espaço.  

 

O Brasil é o lar de aproximadamente 305 povos indígenas, e, no acampamento, representantes de vários deles puderam apresentar suas canções, danças e costumes, assim como suas demandas específicas e projeções.  

 

A tenda principal abrigou uma intensa programação de demonstrações culturais, homenagens, debates, leituras de documentos, manifestos, plenárias e shows performados por artistas indígenas nas noites de cada dia do acampamento, chamadas de Noites Culturais. 

 

[Cantos e percussão do Acampamento Terra Livre tocando ao fundo] 

 

[08:43] Kretã Kaingang: O acampamento terra livre também nos deu a oportunidade de conhecer muitos parentes: de nós se conhecer, fazer esse intercâmbio cultural, fazer esse intercâmbio de povos.  

 

[09:07] Marianna: Esse é Kretã Kaingang, importante liderança indígena. Ele é filho de Ângelo Kretã, um dos principais líderes indígenas no período da ditadura militar. O Kretã Kaingang é coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas da Região do Sul, a Arpinsul, uma das sete organizações regionais de base que compõem a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a APIB. Ele é também um dos fundadores do ATL.  

 

[09:31] Kretã Kaingang: Eu acho que uma das coisas que evoluiu muito sobre a questão do acampamento foi principalmente a conscientização por parte dos parentes, de vir. Hoje a gente vê que as delegações se organizam para vir. Eles não sentem que é só responsabilidade da sua organização local que tem que dar jeito de vir. Não. Quer vir? Já começa a se organizar. A gente tem uma cozinha principal, por exemplo, mas tem delegações que também tem suas cozinhas para poder fazer sua comida.  

 

Uma das coisas que, quando a gente começou, lá atrás, no Acampamento Terra Livre, que era uma das pautas nossas, era a criação de um ministério que fosse ligado aos povos indígenas, sabe? Com nosso próprio ministro, com nossos próprios secretários, nossa própria equipe técnica formada por indígenas.  

 

[10:20] Marianna: O primeiro ATL aconteceu em abril de 2004, durante o primeiro mandato do presidente Lula. Diante do descaso do governo em conduzir uma política indigenista sintonizada com as reais demandas e aspirações do movimento indígena, uma manifestação foi organizada para acontecer na capital do país.  

 

Essa primeira manifestação teve por volta de 200 participantes, que acamparam em protesto em frente ao Ministério da Justiça. A partir dessa mobilização, foi criada a APIB, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. 

 

[10:55] Simão Norivaldo Guarani Kaiowá: O ATL para nós significa quando teve aquelas ameaças todas do governo sobre territórios indígenas, que era para demarcar.  

 

[11:03] Marianna: Esse é Simão Norivaldo Guarani-Kaiowá, originário do Mato Grosso do Sul. Ele é coordenador executivo da APIB pela Aty Guasu, a grande assembleia dos povos Guarani e Kaiowá. 

 

[11:14] Simão Norivaldo Guarani Kaiowá: Então, a partir de 2004, a gente precisou se reunir com várias lideranças aqui em Brasília, onde começou tudo, o ATL, em 2005. Vieram várias lideranças — não teve esse número de pessoas, provavelmente tinha umas 200 pessoas. Quando começou o ATL, não teve nem acordo com a secretária de Segurança: a gente veio para a luta mesmo de defender o nosso direito ao nosso território. A partir dali, nunca mais a gente parou de se encontrar com todas as lideranças, com todos os povos do Brasil, porque a gente mostra que a gente existe para o governo, que estamos resistindo.  

 

E a gente hoje vê a quantidade de pessoas que enxergam qual é a importância da ATL, de lutar pelo seu direito, pelo seu território.  

 

[12:09] Marianna: O acampamento é um movimento orgânico, e, a cada ano, se torna maior. Tem muitas pessoas que já vieram ao Acampamento Terra Livre várias vezes, mas, também, tem gente que veio em 2024 pela primeira vez. O Genésio Yanomami é uma dessas pessoas.  

 

[12:26] Genésio Yanomami: Sim, é a primeira vez que eu estou vendo esses movimentos indígenas do ATL. 

 

Olha, eu me sinto emocionado e alegre e força... eu me sinto acolhido de ver tantos indígenas de etnias diferentes. 

 

[12:50] Marianna: Adrielle, do povo Guarani, vive na aldeia Tapirema, em São Paulo. Ela também está no ATL pela primeira vez. Ela diz que ver tantos povos juntos dá uma sensação de grande energia, de que a mobilização é comum a todos. 

 

[13:01] Adrielle: Nossa, está sendo muito incrível, ver que não é só você que está na luta: são muitos povos. 

 

[13:11] Marianna: Eu perguntei o que ela vai levar de volta pra casa desse encontro.  

 

[13:13] Adrielle: Ah, vou trazer muita sabedoria, muita força e muita espiritualidade também, sabe? E falar para todos que não participaram do ATL que é um movimento muito importante, que estamos aqui não à toa. Ninguém veio à toa pra cá, veio por uma coisa só, todo mundo. 

 

[13:36] Marianna: Jociel Tariano é um estudante de Gestão Ambiental, e esse é o segundo ATL ao qual ele comparece. Ele veio junto com colegas da universidade, num grupo de mais de 80 pessoas.  

 

[13:45] Jociel Tariano A gente veio de ônibus, viajando umas 12 horas, mais ou menos.  

 

[13:50] Marianna: Ele sabe que não é fácil para os diversos povos indígenas estarem presencialmente aqui no acampamento, especialmente num país gigantesco como o Brasil.  

 

[14:59] Jociel Tariano Eu sei que o acesso do Amazonas para Brasília é muito difícil, e que as delegações que têm essa dificuldade de recurso financeiro... vir pra cá. Mas, aqui, os que estão vindo estão representando muito bem a gente, e precisa bastante. Aí eu digo para os parentes que, se tiverem a oportunidade de vir, que venham aqui. Eu sei que o custo é alto, mas a experiência, para mim, vale muito a pena, sabe?  

 

[14:15] Marianna: Ele conta que, apesar de a cidade de Brasília ser muito diferente da sua comunidade em Iauaretê, na Terra Indígena do Alto Rio Negro, quando ele está no acampamento, ele consegue se sentir um pouco mais em casa — especialmente porque, nos últimos três anos, estuda em Campinas, bem longe de casa.  

 

[14:43] Jociel Tariano: Estou há três anos aqui — aqui não, né, em São Paulo, no interior de São Paulo, tentando me formar. Aí, vindo para cá, eu me sinto um pouco acolhido assim, em casa, sabe? Inclusive eles trouxeram farinha para a gente fazer o chibé para compartilhar aqui, o que para mim foi muito bom. 

 

[14:57] Marianna: O chibé, que ele menciona, é uma bebida: se faz misturando água com farinha de mandioca, feita pra matar a sede a qualquer hora do dia, muito apreciada pelos povos do Rio Negro e da Amazônia. Fica com um sabor bem tostadinho. É bem gostosa.  

 

[15:10] [Música com vocais múltiplos e instrumentos é ouvida ao fundo durante o Acampamento Terra Livre 2024] 

 

[15:37] Marianna: Pois é, este ATL contou com a presença de indígenas não brasileiros, que vieram conhecer e se solidarizar.  

 

Rafael Kubeo, da Amazônia Colombiana, veio com uma equipe de indígenas que trabalham com comunicação para a Organización Nacional de los Pueblos Indígenas de la Amazonia Colombiana, a OPIAC.  

 

[15:59] Rafael Kubeo Pero si siguen así con los pueblos indígenas, sin territorio, sin darse cuenta que el rol que cumplen los pueblos indígenas será muy difícil — de aquí a 10, 15 años — que no entremos en una crisis climática tan fuerte.  

 

[16:20] Marianna: Sof, do povo Sami, está no ATL pela primeira vez.  

 

[16:21] Sof’ Elle Beaivvi Mira: My Sami name is Sof' Elle Beaivvi Mira, and my Finnish name is Mira Rauhala. I come from Sápmi, and it spreads across four countries: Finland, Norway, Sweden, and Russia.  

 

[Tradução para o português]: Meu nome é Sof' Elle Beaivvi Mira, e meu nome finlandês é Mira Rauhala. Eu sou de Sápmi, uma região que cobre quatro paises; Finlândia, Noruega, Suécia e Rússia. 

 

[16:39] Marianna: Ela nos contou que no território dela, Sápmi, também existe um evento de reunião de povos indígenas.  
 

[16:45] Sof’ Elle Beaivvi Mira: We have our people there, and then we also have guests from other Indigenous groups. But ATL is like 10, 20 times bigger, and I think it has a really big political meaning compared to the festivals that I'm used to in my territory.  

 

[17:08] Marianna: Yaku, do povo Quechua do norte da Argentina, hoje mora no Brasil, e não é a primeira vez que ele vem no ATL. Ele cantou um pouco pra gente em sua língua Quechua, uma canção que fala sobre a importância do território. 

 

[17:20] [Yaku canta à capela em Quechua] 
 

[17:56] Yaku: Essa música fala mais sobre o território, né, sobre a resistência dos povos, assim, para a gente seguir em frente.  

 

[18:08] Marianna: Por mais que os encontros entre os povos sejam motivo de muita celebração, a missão e origem desse encontro é a defesa dos direitos dos povos originários. É para mostrar que os povos indígenas estão dispostos a se mobilizar para pressionar as autoridades por seus direitos e a vida de seus povos.  

 

Sob esse ponto de vista, seria bom que o acampamento não fosse uma necessidade tão urgente.  
 
Após quatro anos de governo de extrema direita, os povos indígenas acharam que o governo Lula traria maior agilidade nas demarcações e também na proteção aos povos indígenas.  

 

Mas o processo está sendo muito mais lento do que poderia ser, e o marco temporal, a proposta de lei que bota uma data de validade retroativa na demarcação das terras indígenas, segue em curso.  

 

[18:57] Simão Norivaldo Guarani Kaiowá: O Marco temporal, para nós, significa que é um marco de genocídio. 

 

[19:05] Marianna: Essa proposta passou em votação no Congresso e põe em risco a existência de povos indígenas em suas terras. O marco temporal é uma tese jurídica segundo a qual os povos indígenas têm direito de ocupar somente as terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição que ainda vigora. 

 

[19:27] Alberto Terena: Olha, nós não queríamos estar aqui. 

 

[19:30] Marianna: Esse é Alberto Terena, coordenador executivo da APIB pelo Conselho do Povo Terena. O próprio governo não chega numa decisão final sobre a validez da proposta.  

 

[19:40] Alberto Terena O Supremo deu a inconstitucionalidade da lei, e o congresso vem e traz essa lei novamente. 

 

[19:46] Marianna: Estar no acampamento é uma das formas de fazer pressão no governo e tirar todas as dúvidas: marco temporal é contra a vida indígena e contra o futuro do planeta.  

 

[19:57] Alberto Terena: A importância de nós estarmos aqui é de dizer ao governo, ao Congresso, que do nosso território nós não arredamos o pé. Nós temos o direito originário. Os nossos direitos são ancestrais. Nós já estávamos aqui, e nós estamos aqui e aqui nós vamos continuar. 

 

[20:27] Marianna: O Acampamento Terra Livre também foi marcado por duas marchas. Elas saíram do acampamento marchando pela Esplanada dos Ministérios até a Praça dos Três Poderes, guiada por cantos originários e palavras de ordem.  

 

Indígenas representantes dos diversos povos estiveram em sessões solenes no Congresso Nacional.  

 

Também foi lida uma carta com as demandas mais urgentes, intitulada Carta dos Povos Indígenas do Brasil aos Três Poderes do Estado. Essa carta inclui listas a cada um dos poderes, com demandas objetivas. É um documento potente, que passa uma mensagem importante. “Se é por falta de ideia de por onde começar, governantes, comecem por aqui.”  

 

O atual Congresso brasileiro é, em sua maioria, ruralista, o que dificulta o andamento de propostas legislativas pela vida dos povos originários. Por isso é tão importante ocupar esses espaços de poder e demonstrar que o povo está informado e na expectativa de ação. E já. 

 

Como forma de deixar claras as pautas principais de cada edição, nos últimos anos, a organização do acampamento passou a adotar temas, que chamam atenção para as demandas mais urgentes enfrentadas pelos povos indígenas. São como símbolos, e o tema do ATL de 2024 foi: Nosso marco é ancestral: Sempre estivemos aqui

 

Daiara Tukano, artista e ativista, comenta o tema desse ano.  

 

[22:00] Daiara Tukano: O mote deste acampamento é o nosso marco é ancestral, né? Essa Ideia resgata justamente a proposição constitucional de que nós somos detentores de direitos originários por sermos os povos originários. Mas é importante levar em consideração que, historicamente, também somos o último grupo social a ter acesso ao reconhecimento da cidadania plena, né? Até o final da década de 70, os povos indígenas — as pessoas indígenas — éramos considerados incapazes e sob a tutela do Estado. Essa política de tutela, integração, proibição de línguas e políticas oficiais que cometiam uma série de violações aos direitos humanos dessas populações foi sendo desconstruída. 

 

[22:56] Marianna: O tema dizer "sempre estivemos aqui" faz uma alusão ao fato de que o marco temporal propõe uma linha do tempo falsa, um prazo de validade para a existência da vida indígena nos territórios; mas, a verdade é que o Brasil sempre esteve habitado por indígenas, desde muito antes da colonização, vivendo de acordo com saberes ancestrais.  

 

A ancestralidade indígena se faz evidente sobretudo quando o assunto são povos não contactados.  

 

[22:22] Varin Mema: A gente não pode invadir a casa dos outros querendo fazer com que eles vivam igual a nós, igual ao outro. Eu me chamo Varin, Varin Mema, da Terra Indígena Vale do Javari, do povo Marubo. Eu trabalho na Gerência dos Povos Isolados dentro da COIAB, como técnica de projetos. 

 

[23:44] Marianna: A demarcação é muito importante, mas a Varin explica que, até mesmo sob esse processo, o modo de viver originário não é garantido.  

 

Ela conta que, antes das aldeias fixadas, a floresta podia ser explorada pelos habitantes indígenas e depois descansar, ter um tempo de recuperação. Hoje, já não é mais assim.  

 

[24:04] Varin Mema: A gente explora, a gente faz descansar o território, e eles não entendem que a gente vai fazer esse processo de descansar o território, fazendo mudança de terra... antigamente. Hoje, com a fixação de aldeias, está (havendo) escassez de pesca. A nossa floresta é tipo um mercado, então tem que descansar. Os peixes estão... a exploração de minérios está acabando com os peixes.  

 

[24:34] Marianna: Trabalhar com povos isolados é extremamente delicado.  

 

[24:37] Varin Mema: É perigoso, porque eles não sabem que nós somos amigos também. É estranho, então pode acontecer um conflito. Os recém-contatados, eles têm uma vulnerabilidade de saúde, vírus, gripe, essas coisas. É uma situação mais forte. Para nós, contactados, já é forte — imagina para eles, que ficam mais vulneráveis de ficar doente e morrer. 

 

[25:02] Marianna: E a Varin não nos deixa esquecer: o termo isolamento faz parte da perspectiva do não indígena.  

 

[25:09] Varin Mema: Então, os isolados, para nós, assim... para o branco, é isolado. Para nós, eles estão vivendo no seu ambiente, seu modo de ser, estão vivendo o modo de ser como a gente vivia antigamente. Não é que... muitas vezes a gente fala que é atrasado, a gente escuta que é atrasado, primitivo, mas na verdade são povos que vivem a sua cultura como bem querem. Então, é isso que a gente quer que respeitem, assim como nós, povos indígenas, que vêm no meio da sociedade não indígena, querendo apresentar nossa cultura com o nosso jeito de ser. Eu acho que todos esses processos têm que ser respeitados.  

 

[26:24] Marianna: A conquista dos direitos civis e políticos dos povos indígenas no Brasil é fruto de uma contínua luta, que se estende por gerações imemoriais. Essa luta é política, e é também pelo direito de fazer política.  

 

Joenia Wapichana foi a primeira mulher indígena deputada federal, eleita em 2018. 

 

Sob a campanha Aldear a política, em 2022, foram eleitas as deputadas federais Sonia Guajajara e Célia Xakriabá. A Sonia, aliás, já tinha sido candidata a vice-presidente em 2018. A conquista desses cargos por mulheres indígenas no Congresso é motivo de grande orgulho e celebração. 
 

No entanto, para garantir uma cidadania plena aos sujeitos indígenas no Brasil, é preciso que muitos mais representantes originários estejam presentes no poder, e que sua presença e atuação sejam respeitadas e levadas a sério para que os direitos indígenas não sejam, como acontece com tanta frequência, letra morta, uma lei que só vale no papel. 

 

O último dia de acampamento foi marcado por falas dessas mulheres indígenas que estão hoje na política brasileira. Elas se reuniram no palco da tenda principal durante a plenária Aldear a política: Reparações e ações afirmativas

 

Célia Xakriabá, deputada eleita do PSOL de Minas Gerais, começou sua fala puxando um canto de seu povo. 

 

Em seguida fez uma menção honrosa a Mário Juruna, do povo Xavante. Ele foi o primeiro deputado indígena brasileiro, eleito em 1982, seis anos antes da promulgação da Constituição brasileira em vigor. 

 

[28:24] Célia Xakriabá: Juruna, presente! Juruna, nosso primeiro deputado indígena eleito no Brasil, quando não existia nem Constituição Federal brasileira, mas Juruna fez um importante trabalho, e eu tenho dito que, se Juruna estivesse presente no Congresso Nacional, estaria decepcionado também por quanto o Congresso Nacional tem passado a boiada em cima de nossos direitos. 

 

Eu falo, no Congresso Nacional, você que é de determinado partido mais conservador: “Pergunta para seu filho, quando você chegar na sua casa, se gosta dos povos indígenas. Eu tenho certeza que sim.” 

 

Quando nós concorremos às eleições, nós combatemos o racismo, porque quem vota em candidaturas indígenas não vota somente em Sonia Guajajara, não vota somente em Célia Xakriabá. Vota na luta dos povos indígenas, e é comum as pessoas encontrarem meus parentes lá em Minas Gerais, os estudantes indígenas, e dizer: “Eu estou feliz de votar em você.” 

 

[29:25] Marianna: A sociodiversidade radical que o ATL reúne demonstra que os povos das mais diferentes culturas, línguas e territórios compartilharam de um mesmo objetivo: a luta pela defesa dos direitos, das terras e do bem-viver dos povos indígenas. 

 

[29:45] Ouvimos testemunhos em várias línguas indígenas 

 

[31:07] Marianna: É uma luta de todos, pelo planeta Terra, pelo clima e pela justiça social. Não importa em que lugar do mundo você esteja, essa luta também é por você.  

 

MÚSICA 

 

[32:00] Marianna:  Obrigada por ouvir este episódio, e obrigada, também, a todos aqueles que compartilharam suas vozes para este episódio: 
 

  • Rafael Arbelaez  
  • Elon Jacintho  
  • Kretã Kaingang  
  • Kleber Karipuna  
  • Simão Norivaldo Guarani-Kaiowá  
  • Altaci Kokama  
  • Ariabo Kezo  
  • Josimara Melgueiro  
  • Varin Mema  
  • Valéria Paye  
  • Adrielle Poty  
  • Tania Lopez Ramirez 
  • Sof' Mira 
  • Jociel Tariano 
  • Alberto Terena 
  • Daiara Tukano 
  • Célia Xakriabá 
  • Genésio Yanomami 
  • Yaku 

  

Obrigada a todos os povos que compartilharam seus cantos e músicas e tornaram este episódio mais vivo.  

 

Você pode aprender mais sobre o Acampamento Terra Livre através do organizador APIB. Você pode encontrar eles no Instagram e também em outras redes sociais: basta procurar por APIB oficial.  

 

Este episódio foi produzido e mixado por mim, Marianna Romano, com entrevistas e produção adicional por Idjahure Kadiwel. Edição de história por Jenny Asarnow e Maria Fernanda Ribeiro. 

 

Traduções feitas por mim, com transcrições em português de Luiz Hargreaves. 

 

As Ideias para este episódio foram desenvolvidas junto com Tracy Rector, Jessica Ramirez, Julie Keck, Stina Hamlin e Ha'aheo Auwae-Dekker.  

 

Agradecimentos a Maria Fernanda Ribeiro, Nara Baré, Daniela Lerda e Idjahure Kadiwel pelo apoio neste episódio.  

 

Obrigada também a Neyda Ortiz Sundt e Ashley Green pelo suporte nas viagens e negócios, e a Eleni Ledesma pelo gerenciamento de lançamentos.  

 

Obrigada à equipe de comunicação social e digital da Nia Tero: Nancy Kelsey, Alex Robinson, Laurine Peel, Luana Polinesio, Bruno Weis e Hill Ossip.  

 

Os gráficos do Seedcast são de Cindy Chischilly, e a música-tema é Rooted, de Mia Kami.  

 

Nia Tero é uma fundação baseada em Seattle.  
 
Somos indígenas e não indígenas com a missão de garantir a tutela indígena para todos os ecossistemas vitais.  
 
Isso significa que fornecemos apoio aos povos indígenas em todo o mundo que estão protegendo suas terras da colonização e destruição.  
 
Suas práticas são um dos nossos melhores guias para tornar a Terra habitável para as próximas gerações.  

 

Aqui no Seedcast, nossos convidados representam a si mesmos. Eles não refletem necessariamente as opiniões da Nia Tero. Honramos suas perspectivas honestas e experiências vividas.  

 

E obrigada também a todos da APIB pelo seu trabalho a serviço dos direitos indígenas!  

 

Muito obrigada e até breve.